Aurora


Chamava-se Aurora. Mas, a despeito do nome, nada tinha que lembrasse o alumbramento do sol quando rompe a manhã. Menos ainda que se parecesse com aquela moça por 100 anos adormecida. Pelo contrário. Nenhuma fada jamais lhe brindara com o dom da beleza. Desde sempre fora conhecedora de sua própria face e sabia que estava muito mais próxima da Moura Torta que da princesa.


Quando nasceu, a mãe pensara: são assim mesmo todos os bebês. Mas os anos não abrandaram suas feições. O nariz ocupava-lhe quase metade da cara. E sob os minúsculos olhos, cavavam-se olheiras fundas e negras. As orelhas curvavam-se para a frente, pedindo passagem. E também o queixo projetava-se, carregando consigo o lábio inferior. Além disso, era mirrada e pequena, o que acabava sendo uma vantagem na hora de não se fazer perceber.

Mesmo a mãe, por quem tinha tanto apreço, tratava de escondê-la das amigas mais nobres. Na escola, foram tantos os apelidos, que por pouco não esquecera o próprio nome. Habituou-se à solidão. E buscou os livros como companhia. Mas nem eles aliviavam-lhe a pena: as histórias não reservavam finais felizes para as bruxas. Recorreu aos poemas: estes, sim, entortavam palavras e teciam mantos cinzentos para as manhãs.

Fez-se desde cedo tecelã de palavras. E usava as mais feias para fazer o alinhave. Cobria de catarro as estrelas e mandava à merda as manhãs azuis. Misturava as tintas, todas. A perfeição se desfazia em sombras e monstros habitavam os espelhos dos palácios. Coletava destroços, esgotos, ratos e baratas e com eles construía seus poemas. Assinava: Aurora.

Aos poucos, as manhãs foram nascendo diferentes. E o sol, ainda que não lhe pusesse luz à face, foi aquecendo palavras no coração da moça. Um dia, quando todos já lhes conheciam os versos, ela saiu de sua toca. Os poemas, que já eram comentados em rodas literárias, ganharam um rosto. E o mais incrível: o rosto da Aurora.

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