A VIDA, ESTA INJUSTA COMPETIÇÃO...
- Merda!
Marina tenta,
em vão, assistir a aula remota pelo seu celular. Sentada na calçada de Dona
Edith, a dona do Mercadinho da Rua Larga, ela capta as sobras do sinal de
Wi-fi. Até dá para conversar pelo WhatsApp ou até mesmo olhar outras redes
sociais, mas é impossível acompanhar a aula desse jeito. Em tempos normais,
certamente Dona Edith a deixaria entrar. Mas, não com essa doença espalhando
morte por aí...
A morte agora chega à favela, não apenas nos carros pretos da Polícia ou na troca de tiros da bandidagem. Agora chega pelas narinas, pelos olhos, pela boca... invadindo o corpo todo e os pulmões. Marina sente um aperto no peito ao lembrar do sorriso de Dona Nilza, a agente de saúde que essa doença carregou.
A morte agora chega à favela, não apenas nos carros pretos da Polícia ou na troca de tiros da bandidagem. Agora chega pelas narinas, pelos olhos, pela boca... invadindo o corpo todo e os pulmões. Marina sente um aperto no peito ao lembrar do sorriso de Dona Nilza, a agente de saúde que essa doença carregou.
Ela tem medo,
sim. Por isso é a única da comunidade que só sai à rua de máscara, feita por
ela mesma com uma camisa velha. E nem liga pra zombaria dos vizinhos, que
parecem nem ligar para esse vírus traiçoeiro que anda espalhando o terror.
- Merda, merda,
merda!!!!
Marina desiste.
Não dá pra acompanhar as aulas assim... Está no último ano do Ensino Médio e tem
esperança de entrar na Faculdade. Ou melhor, tinha... É uma das melhores
estudantes da escola. Já ganhou até prêmios fora do estado, pela pesquisa na
Feira de Ciências.
Ela volta pra
casa cabisbaixa: sua esperança é que o exame para entrada na faculdade seja
adiado. Se todos adiarem seus sonhos, ela não será a única perdedora. Terá sido
uma decisão do governo e todos estarão em igualdade de condições. Mas ser
reprovada vai abalar suas esperanças. E vai dar a seu pai mais um pretexto para
fazê-la desistir e aceitar a vida que lhe está destinada: casar cedo, encher a
casa de filhos e aguentar calada um marido que, aos trancos e barrancos sustenta
a casa e assim acredita ser dono de tudo o que compõe a residência.
Melhor ajudar a
mãe a dar um jeito no almoço. Desde que essa doença se alastrou, tudo está
difícil. O pai pode ter muitos defeitos, principalmente o de brigar e bater,
mas é um trabalhador e tanto: pedreiro como ele não existe! Só que nesses
tempos de doença, quem quer saber de pedreiro? E o pai ronda pela casa,
nervoso, gritando... ou sai desesperado e volta bêbado, ainda mais agressivo. E
o pior: sem um tostão pra feira.
A mãe lava
roupas pra ajudar, mas também esse serviço está mais raro nesta época. Uma ou
outra pessoa ainda envia as roupas. E é Marina que se encarrega de ir buscá-las
e levá-las até o cliente.
- É bom lavar
logo minha máscara por que vou ter que fazer entrega agora à tarde... (pensa a
menina)
Como é mais
jovem, é também ela que se encarrega das compras, pagamentos, e tudo que
precise ser resolvido na rua – como aquele auxílio emergencial que ela vai ter
que ir buscar no banco...
A noite é o
tempo que lhe resta para estudar. Mas esta noite não...
Desde que ouviu
na TV a fala do ministro, há uma trava que lhe sufoca a garganta e as
lágrimas escorrem de seus olhos como indomável tempestade.
- "Você
que está aí, eu sei que a doença atrapalha um pouco, mas atrapalha todo mundo.
Como é uma competição, é justo. Continue estudando, continue se preparando. E,
se Deus quiser, nos veremos no ano que vem em uma universidade federal",
disse o ministro da Educação...
Marina odeia o
presidente e todos os seus ministros. As palavras sufocadas a estrangulam...
ela teme até seus pensamentos, talvez o pai possa ler a raiva que ela tem desse
homem, que ele tanto admira. Atrapalha todo mundo? Da mesma maneira? Competição
justa?
Sufocada em
casa, Marina vai para a calçada, as lágrimas embotando sua visão... Ouve, lá
dentro, os gritos do pai e da mãe, como todas as noites.
- Sem máscara
Dona Marina?
É a vizinha do
lado, zombando. Usa a mesma frase que ela costuma dizer a todos da comunidade,
tentando em vão fazê-los se proteger.
Hoje, sentada
sem máscara na calçada de casa, Marina os entende. Eles não temem a morte
porque não sabem sonhar. Como ela sabia. De noite, quando se agarrava aos seus
livros, se imaginava trabalhando no Fórum, aquela construção imensa do lado da
favela. Vestida com aquelas roupas bonitas das advogadas, emitindo pareceres,
examinando processos... Quando varava as madrugadas lendo, estudando e
pesquisando, imaginava outra vida: uma casa nova, de cerâmica, seus irmãos numa
escola boa. E o pai, indo trabalhar e se despedindo da mãe com um beijo e um
sorriso: - É tão mais fácil ser uma família feliz assim...
E Marina pensa
que nunca viu o sorriso de seu pai.
Hoje Marina não
teme a morte. Está sem máscara, na rua. E ecoam no seu corpo inteiro as
palavras de um governo que não conhece seu povo e destrói os sonhos de cada um.
Comentários