Fio da vida


Habitava a casa desde sempre. Esquecida em uma encruzilhada da parede. No alto, onde as vassouras não alcançam. De lá tecia seu manto. E espiava.


De cima de seus fios, via o que havia quando as cortinas se fechavam. A confusão de pernas e corpos. Os sussurros e gemidos. As mãos que se achavam e se perdiam. A fusão. O enlace. O amor...

De cima de seus fios, via crescer o ventre da dona. Ouvia os choros do novo habitante. E de outro. E mais outro... Via a dona tentar domar a vida: limpar, arrumar, passar, costurar, cozinhar, amamentar, ensinar, alimentar. Via a dona esquecer-se da vida e a vida esquecer-se da dona.

De cima de seus fios, via o que havia quando as cortinas se fechavam. Os gritos, o choro, o quarto arrumado. O homem que saía, batendo portas. A dona sozinha. A cama vazia...

De cima de seus fios, via crescer cada habitante. E ir embora. A casa vazia. A dona sozinha...

Então, já não havia vassouras a chacoalharem o chão. E ela deixou seu manto estender-se até o baixo. E ela deixou seu manto percorrer o assoalho.

E um dia, encontraram a dona sorrindo: seu corpo gelado coberto por uma imensa teia de aranha...

Comentários

ONG ALERTA disse…
Absorvida pela vida...beijo Lisette.
Magna Santos disse…
Já passei aqui outras vezes, tentando atinar para o que dizer. Desisti. Estou à beira de ficar em silêncio novamente. Mas, eis que me animo. Quero também descer ao assoalho, rasgar o véu do vazio, aproximar-me devagarzinho, só para te dizer, Fabi, que eu sei do que tu falas, mas não sei como falar.
Assim, fico apenas aqui.
E admiro estas palavras que possuem 2 coisas fundamentais: simplicidade e beleza, acrescentando na sua feitura a genialidade própria dos grandes poetas.
Este aqui, se é possível apontar, é um dos mais belos que tu já escrevestes, Fabi. Lindo demais!
Beijão bem grandão!
Magna
Dois Rios disse…
Luna, teu belo e sensível texto estende sobre nós o autêntico manto da realidade. A vida, ainda que por vezes pareça, jamais passa desapercebida.
===
Quanto ao teu comentário, não tens nada a agradecer. As minhas palavras lá no Sementeiras da nossa amiga Magna, foram meras constatações de um lindo trabalho movido a amor.

Beijo,
Inês
Canto da Boca disse…
Eu continuo sem saber o que dizer! Ou tenho que reaprender a dizer as emoçoes que seus textos me causam, ou eu nao sei o que vai ser de mim, Fabi!
Esse negócio de só existirmos depois da morte, é doloroso. E tendo o reconforto apenas nessa hora fria...
Só consigo dizer: que texto, viu?!

Beijao!
Dimas Lins disse…
Luna,

Triste, sensível e muito bonito. Você tem um jeito na escrita de que gosto muito, pois o texto evolui na medida certa, na dose certa e tem uma catarse que arremata o texto de forma sensacional.

Lindo mesmo.

Dimas

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