O estupro do anjo

Um anjo. Ela, a menina. Tal pureza de intenções que chegava a ser um desaforo da sem-vergonhice. Como papel em branco: jamais uma letra, um traço riscado. Mas com todos os convites e possibilidades que o vazio enseja.


Dulcinha a chamavam. Criada sem dono desde os nove anos de idade. Sozinha, a buscar amparo na vizinhança: um servicinho aqui, outro ali, a lavar roupas e cuidar dos bebês para ganhar o pão de cada dia.
Sequer tinha consciência da própria beleza: os cabelos negros, caídos aos ombros em longos cachos, e os olhos rasgados de seus ancestrais Xukuru.
Nunca soubera ser bisneta de indígenas. Nascera na cidade, entre casebres e ratos, mas guardava lá no fundinho da alma a nostalgia da terra. E olhava árvores e bichos como quem vê um tesouro.
Enquanto a mãe foi viva, Dulcinha frequentou a escola. Aprendeu as letras a pulso, que seu pensamento não conseguia fixar-se por muito tempo naquelas lições. Mais da metade da aula passava ela em seu mundo próprio, dos devaneios, onde jamais a alcançavam.
De resto, brincava e achava graça em tudo, até nas desgraças. E ajudava a mãe, lavando roupa, entregando a trouxa em casas de madames, limpando o barraco, ajeitando algo pra comer.
Quando a mãe morreu, Dulcinha não chorou nem sorriu. Os vizinhos comentavam: - Que vai ser da menina, sozinha? - Nove anos apenas, mas indócil. Jamais se sujeitaria aos cuidados de estranhos. Por isso, ninguém ousou falar nada ao Conselho Tutelar. Deixaram como estava: a menina em sua casinha, a fazer o de sempre - as roupas, as trouxas, um trocado da vizinhança aqui e acolá.
Foi se virando e foi crescendo. Menina adulta: os seios, os pelos, o sangue nas pernas. O mesmo jeitão de menina, a escancarar sorrisos, a saia curta, a forma dos seios revelando-se sob a blusa branca...
Em vão as vizinhas alertavam: essa saia curta, menina; fecha as pernas, se ajeita, coloca um soutien... Dulcinha revelava os dentes, mas as palavras buliam em seus ouvidos sem chegar na alma.
À noite, em seu barraquinho, começaram a chegar os homens. Primeiro, os rapazotes. Faziam propostas: um trocado, uma pulseira, uma boneca, radinho de pilha... Ela satisfazia-lhes os gostos como quem executa uma tarefa qualquer - um prato que se lava, um alimento que se cozinha. E deixava-os ir, satisfeitos. Ela também, alegre de possuir um presente.
As vizinhas passaram a lhes fechar a porta à cara. Não mais uma ajuda, nem um prato de comida, uma trouxa pra lavar. Nunca mais crianças para tomar conta, que para os outros, era uma perdida que macularia a alma dos bebês.
Dulcinha não entendia as mudanças, mas seguia com seu sorriso - amparando-se no que lhe ofereciam os rapazes.
Um dia, deixou de sair à rua. Um dia, dois, três... Quando um dos rapazes foi buscar os seus serviços, o barraco já exalava a pestilência da morte.
Em um canto do chão, a menina. Roupa rasgada, um tiro na testa. Mais tarde, a perícia confirmou o estupro, não por um, mas por vários homens. No corpinho de quinze anos, pela primeira vez, não havia um sorriso. Espalhada a notícia, a vizinhança sentenciou: - Era uma perdida. Mereceu!

Comentários

Sulamita disse…
Nossa, Fabi, que beleza de conto. Daqueles de dar "dor na alma". Vou replicar no blogue, posso? Bjm

Postagens mais visitadas deste blog

Mais que chocolates...

Gritos de Gaza