Encontro

Um elevador. Dentro, uma senhora, elegantemente vestida, com blaiser, calça de linho e sapato de salto alto. E uma empregada doméstica, com trajes mais simples e sandálias de dedo.


MADAME – O que foi isso?

EMPREGADA – Travou.

MADAME – Como?

EMPREGADA – Travou. O elevador.

MADAME – O elevador travou?

EMPREGADA – É. Acontece sempre no elevador de serviço...

(Madame olha a outra dos pés à cabeça)

MADAME – E porque você não está no elevador de serviço?

EMPREGADA – Pois é... travou.

MADAME – O elevador de serviço?

EMPREGADA – E este também.

Tempo. Silêncio.

MADAME – E agora?

EMPREGADA – Agora o que?

MADAME – A gente não faz nada?

EMPREGADA – Já fiz. Apertei o botão do alarme. Agora a gente espera.

Tempo. Silêncio. A empregada encosta na parede do elevador e cruza os braços.

MADAME – Demora?

EMPREGADA – No de serviço demora. Talvez aqui seja mais rápido.

Tempo. Silêncio. Empregada tenta puxar assunto.

EMPREGADA – A senhora mora no 611 não é?

MADAME – É.

EMPREGADA – Eu trabalho bem do seu lado, no 612.

MADAME – É mesmo? Eu nunca lhe vi...
EMPREGADA – Eu sei... As madames nunca nos vêem.

Tempo. Silêncio.

EMPREGADA – A senhora é patroa da Luzinete não é?

MADAME – Sou.

EMPREGADA – Como é que 'tá a filha dela?

MADAME – Como?

EMPREGADA – A filha dela... a que tem câncer...

MADAME – A Luzinete tem uma filha?

EMPREGADA – É... uma menininha de cinco anos. Tadinha... vive de médico em médico, fazendo tratamento. Nem cabelo tem, coitada. A Luzinete chora tanto...

MADAME – Mas eu nunca a vi chorando.

EMPREGADA – Eu sei. Vocês, madames, nunca nos vêem...

Tempo. Silêncio. A empregada senta no chão. A madame despe o blaiser, desabotoa a camisa até a altura do peito, deixa a bolsa em um canto, tira as sandálias, encosta na parede...

MADAME – E você, tem filhos?

EMPREGADA – Tenho, sim. Mas já estão crescidos. Tenho até netos... Meu mais novo tem quinze anos.

Tempo. Silêncio.

MADAME – Sabe... eu sempre quis ter filhos?

EMPREGADA – E porque não tem?

MADAME – Não posso. Já tentei. Meu útero não segura...

EMPREGADA – Mas a senhora já foi a um médico?

MADAME – Já. Fiz até tratamento. Mas, depois do terceiro aborto, desisti...

EMPREGADA – Sei... e porque não adota uma criança?

MADAME – É. Pode ser...

Tempo. Silêncio.

MADAME – Como é mesmo seu nome?

EMPREGADA – Lucíola.
O elevador destrava.

EMPREGADA – Opa, voltou!!!

A madame se apressa em vestir seu casaco, abotoar a camisa, calçar a sandália, pegar a bolsa. Põe-se de costas para a empregada, junto a porta. A outra fica por trás. A porta do elevador para no sexto. A madame sai sem olhar para trás.

Mais um exercício da Oficina de Dramaturgia com Maria Helena Kuhner

Comentários

Dimas Lins disse…
Bela crônica de uma de nossas mazelas sociais. Presas no elevador, as vidas da madame e da trabalhora doméstica são iguais, como deveria ser do lado de fora.

Final irreprensível e verdadeiro.

Bom estar aqui novamente.

Abraços,

Dimas Lins
Em situações-limite as máscaras tendem a cair... E, depois, tudo "volta" ao "normal". Valeu demais o texto!

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