Conto no escuro


Maria Helena conhecera a luz elétrica quando tinha 12 anos de idade. Hoje, mais de dez anos depois, seus olhos farejavam abismos, acostumados aos insondáveis da noite. Como felina, ela vagava pelas ruas escuras, tecendo manhãs. 


Nada mais a fazer. Entre as faíscas da memória, ela buscava um tempo em que ainda havia circos nas ruas. Em que havia bares, shows e teatros. Em que carros e gentes semeavam ruídos na cidade iluminada.


Há exatos onze anos e cinco meses, o país começara a se apagar. No princípio, a escuridão veio aos poucos. Mas depois se apossou de tudo e varreu do mapa os últimos contornos de um país, outrora chamado Passaraj.

Foi em 17 de maio de *** que o governo anunciou os primeiros cortes de energia. Estava vetado o fornecimento de luz elétrica para shows, eventos desportivos e anúncios publicitários. Não havia água. Todos os rios que alimentavam as companhias hidroelétricas estavam com sua capacidade comprometida.

Aos poucos, as pessoas se acostumaram com essas ausências. Os jogos de futebol passaram a ocupar as tardes e a vida transcorreu em seus comuns. Com 12 anos, Maria Helena pouco atentou a mudanças. Apenas notou que era obrigada a ficar menos tempo frente a televisão e que a mãe começou a usar lampiões a gás.

Um dia, contudo, tudo desabou. Foi a primeira vez que a menina viu o pai chorar. Sua empresa tivera que reduzir a mão-de-obra. Entre os dispensados estava ele, após 20 anos de duros serviços prestados. Nessa época, ainda havia bares à noite e alguma luz nas casas. Mas o que os olhos de Helena não viam era o exército de excluídos que crescia e, a exemplo do pai, perdia tudo do dia para a noite.

Venderam-lhe a televisão, o rádio e a geladeira. Nada mais se guardava porque nada havia a guardar. A mesa vazia passou a fazer parte da vida tanto quanto a escuridão. As noites ficaram desertas: ninguém mais tinha coragem de enfrentar as hordas de famintos e famigerados que se avolumavam nas ruas. De dia, uma multidão de desesperados quebrava postes, invadia empresas, sequestrava políticos e saqueava mercados. A divisão de renda passou a ser feita à força porque os degradados invadiam mansões e rompiam os muros dos castelos.

Não havia mais o que fazer. O governo, acossado, fugiu para outras paragens. E o abastecimento de luz, entregue às empresas privadas, tornou-se privilégio de poucos, que ainda podiam pagar as milionárias tarifas.

O tempo passou e as pessoas se acostumaram ao caos. Deixaram de gritar os miseráveis porque a penúria passou a ser de todos. Deixou de ser de alguns. Calaram os jornais. E o mundo, lá fora, esqueceu que havia um país chamado Passaraj. As empresas de fornecimento de energia elétrica se retiraram da cena de mansinho. A luz virou uma página virada da memória.

Agora, tudo estava calmo na escuridão. Helena tinha 23 anos de vida e 8 de solidão. Perdera o pai aos 14, a mãe aos 15 e a esperança aos 16. Escola não tinha desde os 13 anos e os amigos, que não sucumbiram no caos, fecharam-se em seus domínios para nunca mais sair. Helena fez da solidão sua companheira e da desgraça sua armadura. Assim protegida, poderia andar tranquila neste ponto negro suspenso no tempo.

O sossego atormentava-se apenas com a memória, que vez ou outra gritava, louca. Era ela a única que guardara uma réstia de luz. E com este fogo alimentava o grito, para falar de um tempo em que houvera vida. Em que ainda nasciam crianças e se beijavam os namorados nos jardins.

Era 15 de novembro de 2012. Helena decidiu apagar a memória e nunca mais ver a luz. Extinguiram o fogo. As sombras deixaram de incomodar. De dia, ninguém mais olharia as sobras de humanidade que resistiam sobre os escombros. O país virara um fantasma. Um ponto sem nó. Helena apagara a própria sombra para não ter que olhar estrelas sem as poder alcançar.
Desencavei este conto, que jazia em um arquivo sem nome.
Foi escrito nos malfadados tempos de FHC e seu governo do apagão

Comentários

Magna Santos disse…
Li primeiro sem a observação da data que escreveste e a minha interrogação era: afinal, ela está falando do passado ou do futuro?
Depois, apesar de tão específico no passado, ainda me agonia a perspectiva do futuro. Há fantasmas antigos a nos apavorar, outros viraram vultos na multidão, sorrateiros esperam outro "apagão".
Bom teres desencavado este conto.
Abraço.
Magna

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